“Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais”
(Alucinação. Belchior)
Anderson Marques, Isabella Carvalho, Isadora Bertholdo, Naia Ceschin e Nina Tomé formam um grupo de artistas oriundos de diferentes áreas de formação: arquitetura, matemática, design gráfico, audiovisual. Apesar disso, desde 2022 vêm mantendo uma profícua e constante interlocução em torno de sua produção artística. Um dos resultados parciais desse diálogo, pois há outros mais inapreensíveis, é a mostra coletiva As coisas estão no mundo apresentada no espaço Delirium. A exposição reúne obras, como o próprio título aponta, nascidas da atenção às coisas cotidianas, de caráter mundano, objetos e materiais coletados às vezes ao acaso, por outras como metodologia ou gesto primário do fazer.
Assim, Anderson Marques, a partir de derivas pela cidade, observa e recolhe fragmentos de materiais de construção, como pedaços de forro de gesso e de uma placa de MPU (daquelas usadas em dutos de ar condicionado), tornando-os suporte das fotografias em que registra as grades da cidade. Às vezes o artista se vale desse procedimento de deslocamento de modo mais cru, ou seja, sem interferir no objeto apropriado, como no caso da escultura de linhas orgânicas que nada mais é do que uma grossa camada de tinta de sinalização que se desprendeu da calçada. Entretanto, essa Sculpture trouvée resulta em algo semelhante aos pedaços de gesso e à placa de MPU – em ambos os casos, os materiais ganham uma dimensão que os tira do seu contexto industrial, conferindo-lhes uma singularidade. Isabella Carvalho junta restos de espuma, estopa e plástico e com eles recobre uma estrutura de metal como se quisesse torná-la confortável ou protegê-la. Mas quem sabe, inversamente, a artista queira nos proteger de prováveis quinas pontiagudas ou simplesmente ocultar uma forma ou cor de que não gostou? Já Isadora Bertholdo interfere em uma edição de 1952 da coleção Obras Primas da Pintura Universal: da Renascença à Atualidade encontrada em um sebo. As 160 pranchas ilustradas que compõem os 3 tomos da coleção, fixadas como uma camada adicional às folhas encadernadas que compõem os livros, foram arrancadas pela artista. No entanto, Isadora não retira as pranchas aleatoriamente. Ela percebe, antes de tudo, o trabalho do tempo que fez a matéria que aglutinava a imagem à página desaparecer quase por completo. Assim, ao separar as folhas impressas daquelas que lhes serviam de suporte, ela dá forma ao trabalho dos dias, que só pôde se tornar visível porque a artista o concluiu antes que o tempo o fizesse, deixando vagos rastros das pranchas ilustradas onde ainda se conservava algum resquício de cola bem como o nome e autor das obras. Além dessa peça, Bertholdo nos brinda com seus Cacarecos, pequenas esculturas formadas por uma série de objetos aos quais ela resolveu dar uma segunda chance. Naia Ceschin também se abaixa para coletar coisas, mas não pelas ruas da cidade ou vasculhando fundos de gavetas. Talvez, caminhando por um jardim ou pequena mata de onde retira as folhas de coqueiro que dão contorno às composições que misturam tapeçaria, pinturas e contas, negando ou subvertendo a grade regular da talagarça usada em seus trabalhos que, mesmo quando apresentados num plano regular como em Esse coqueiro que dá..., têm a continuidade e a homogeneidade da grade interrompidas pelos cortes que ela faz na trama de suas tapeçarias. Enfim, Nina Tomé com os bordados que faz à mão livre sem seguir nenhuma axialidade ou padrão. Usa, como suporte, peças do vestuário, retalhos de tecidos muitas vezes esburacados pela ação de insetos, por algum acidente ou pelo desgaste, que os fizeram perder o valor comercial. Na obra Véu, ela sutura os buracos de uma peça de voil através de seu lento trabalho de costura manual, emoldurando e impedindo o aumento de vazios, que, aliás, já estavam no mundo. Em Ficção científica, a artista recorta em partes um retalho de couro tingido de prata e sobre elas borda frases ou fragmentos de textos como se fossem anotações esparsas de um livro porvir. A escrita fragmentar aparece também na peça Meias palavras. Nina borda um diálogo de apenas duas frases, uma para cada um dos pés de um surrado par de meias que, não sem ironia, emoldura como se fosse o derradeiro triunfo de uma relação rompida.
Entre todas essas coisas que estão no mundo, há, junto aos retalhos de tecido, folhas secas, cacos de materiais de construção, moedas, pedacinhos de papel e de plástico, estopa e outras quinquilharias, o ofício dos artistas, que também é mundano. Nós, os artistas, como bem observou o filósofo David Lapoujade, ora advogamos ora testemunhamos em favor das existências fracas, em favor de “todas essas existências que reivindicam existir de outro modo ou de conquistar mais realidade”,1 dando-lhes novas nuances, um novo brilho porque temos a capacidade, antes de tudo, de reconhecê-las. Aqui vale mencionar os desenhos de Isabella Carvalho e a tapeçaria bordada de Naia Ceschin chamada Ancestral-hipótese. Essas peças, e não só elas (aqui podemos pensar também na Ficção científica de Nina Tomé), conferem materialidade às existências que estão naquele lugar entre o ser e o nada, ou seja, às existências mínimas: o trabalho doméstico realizado pelas mulheres e a certeza de uma ancestralidade biológica comum e unicelular que coloca, ao fim e ao cabo, a própria vida como uma possibilidade que se realizou por um triz.
No primeiro caso, Isabella parte de imagens de performances que realizou recortando e duplicando partes do seu corpo para formar corpos quase mitológicos que, por sua vez, conferem ao seu próprio corpo outras formas e possibilidades de ser. As imagens que cria a partir da repetição e de desmembramentos de sua própria imagem colocam em outro plano as pernas e os braços femininos, sobre os quais frequentemente recaem, segundo a artista, a responsabilidade pelas tarefas de cuidado. Nos desenhos, seus braços e pernas tornam-se divindades, monstros, grafismos monocromáticos que são quase símbolos ou hieróglifos. É também por meio de um tipo de grafismo que LUCA, o último ancestral universal unicelular do qual supostamente toda a vida na terra teria derivado, é representado por Naia na peça Ancestral-hipótese. Com essa grande tapeçaria bordada ela cria uma tecitura, uma trama, digamos, um contexto à existência virtual dessa provável origem comum, reforçando sua realidade. Porém, com o nome Ancestral-hipótese, ela separa a noção de ancestralidade de um compromisso com a ideia de verdadeiro ou falso. Como hipótese, o ancestral universal torna-se a proposição de um princípio a partir do qual poderíamos deduzir um determinado conjunto de consequências, suposições, conjecturas que podem ou não se confirmar, nos permitindo ver as existências como inacabadas, incompletas e isso nos dá uma perspectiva de futuro.
Por fim, não posso deixar de mencionar que o título dessa exposição tem um querido homônimo, uma instalação de Marilá Dardot em que a artista esculpe o verso de Paulinho da Viola, As coisas estão no mundo, naquelas grandes resmas de papel que sobram nas gráficas após o processo de ajuste de impressão. Assim como os trabalhos aqui reunidos, a peça de Marilá não se trata meramente de reuso, reaproveitamento ou de oferecer uma segunda chance àquilo que foi descartado e perdeu o valor, mas também de reencantar e fazer delirar essas existências rejeitadas, mostrando que nem sempre “lugar de poesia é na calçada e de quadro na exposição”.2
Lais Myrrha
Primavera de 2024
Referências
1. David Lapoujade: 'Existências Mínimas'.
2. Sérgio Sampaio: 'Cada Lugar na sua Coisa'.