Artista visual
São Paulo/SP
A partir do meu gesto – espontâneo, incontrolado, sujo, particular –, desafio o cânone por meio de colagens e desenhos. Me contraponho à imutabilidade, à precisão, à divindade e à universalidade estabelecidos por essa força, dando foco ao erro e evidenciando o caráter improvisado de cada composição. Me aproprio do imperfeito e do acaso transformando o processo na própria obra.
Carioca, nascida em 1996, se formou em design gráfico na PUC-Rio (2019). Cursou diversas aulas no Masp e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde também fez acompanhamentos com Anna Costa e Silva e Fábia Schnoor e participou da Mostra Escola de Artes do Parque Lage (2021). Em 2022 ingressou na pós-graduação Práticas artísticas contemporâneas na Faap, de onde se originou sua primeira instalação site-specific (Minha mente não é oficina do diabo, 2023). Os registros fotográficos foram exibidos na exposição coletiva "Em construção já é ruína" (2023), no espaço de arte Canteiro. Hoje, faz parte do acompanhamento artístico com a artista Lais Myrrha, que fez a curadoria da exposição coletiva "As coisas estão no mundo" (2024).
TRABALHOS
Meu sonho, acabar em sebo
Ode às coisas perdidas (como nós dois e essa foto que achei no chão de Paris)
Achei meu primeiro cabelo branco (20/5/24)
Gastos, cobranças e superficialidades
Paguei oitenta reais na minha primeira bíblia
Excertos
Minha mente não é oficina do diabo
Rastros
O leão de tanto urrar desanimou
Triste/amargo
PUT IN MOUTH
Janela para o mundo exterior
Cacarecos
Rabiscos
Melancolia
Estranhezas V
Estranhezas IV
Estranhezas III
Estranhezas I
TEXTOS
Zona de conforto (23/3/2024)
Minha mente não é oficina do diabo: processo (8/11/2023)
Horror vacui (24/7/2023)
Átimo (14/7/2023)
Quarto (16/6/2023)
Rastros: contexto (27/5/2023)
Pessoa que quero bem (24/5/2023)
Gestos, coincidências e desvios (1/12/2022)
A urgência em palavras (28/11/2022)
Textos honestos (1/5/2022)
Azul (6/9/2021)
EXPOSIÇÕES COLETIVAS
As coisas estão no mundo (2024)
Em construção já é ruína (2023)
Mostra Escola de Artes do Parque Lage (2021)
CONTATO
isabertholdo@gmail.com
@isadorabertholdo
Textos honestos
Série de palavras para cada dupla de páginas dos rabiscos, escritas no momento de postagem no Instagram.
As datas se referem aos textos, não às duplas.
1º de maio de 2022
Tenho uma coleção de diários vazios. Tenho uma infinidade de cadernos pela metade. Queria ter a disciplina de sentar e desenhar; de sentar e escrever. Queria, mas não tenho. Minha arte é de momentos, preciso estar tão absorta em sentimentos que eles vomitam através das minhas mãos. Minhas melhores obras são assim; sou uma artista relâmpago. Criar um hábito de produzir é cansativo, quase não-natural pra mim, por isso a quantidade de folhas em branco que habitam minhas gavetas. Frequentemente sinto a necessidade de fazer um esforço: faço desafios e os cumpro toda vez. Mas assim que eles passam, com eles se esvaem meus hábitos de novo. Não consigo forçar a arte, ela simplesmente acontece. Como um novo desafio, um ritual sugerido em uma aula, decidi completar um caderno. Pelo menos um, o primeiro. Preencher as folhas antes de dormir sob uma luz verde: essas eram as regras. Completei. Consegui. Segui. Não todos os dias, com vários hiatos, até precisar expurgar a arte de dentro novamente. No primeiro dia tinha tanta coisa me habitando que precisei de 14 páginas para dar conta. Não passo mais de uma hora em cada dupla, tenho que jogar esses sentimentos pra fora o mais rápido possível antes que se percam dentro de mim mais uma vez. É curioso o passar das páginas porque também não sou uma artista de estilos. A cada folha entra uma outra técnica, um gesto, um rabisco. Parece que minhas mãos, assim como eu, nunca se mantêm as mesmas. “Tudo flui e nada permanece”. Mas, ao observar com olhos atentos, meu caderno/diário é completamente eu; cuspido e escarrado. Ninguém mais poderia tê-lo feito. Criei um dicionário visual do qual nunca vou conseguir usufruir porque ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Essa jornada resolvi compartilhar. Acho que colocar em palavras o meu processo (e defendo furiosamente que o processo é a parte mais importante de qualquer obra) ajuda a me entender melhor, a percorrer menos desorientada esse novo caminho (e deus sabe o quão ruim sou de direção). Não há Google Maps que decifre a melhor rota dessa encruzilhada. Em breve diversas páginas e textos honestos residirão nesses cubos irreais. Obrigada heráclito pelos ensinamentos.
19 de maio de 2022 (pp. 1-2)
Comecei pelo começo. Quantos dias eu já vivi? Fiz as contas. 9 mil e qualquer quebrado. Fui fazendo bolinhas pra representar cada um desses dias. Dias bonitos, dias inúteis, dias de tristeza. 1 2 3 4 5 6 7 8 a cada 100 bolinhas eu descansava. 109 110 111 112 113 já ficou entediado só de imaginar? Eu fiquei. 216 217 218 219 minha mão doía de fazer esses pontinhos. 345 346 347 348 349 a primeira página foi uma xerox de um papel de rascunho que minha tia me deu, sujo de restos de pastel oleoso. Por que não? reciclagem! 562 563 564 565 pra ser bem sincera, perdi a conta várias vezes. 894 895 896 897 898 curioso que esse dia olhei fixamente pras minhas mãos em movimento e, hoje no banho, não as conheci por um breve instante. 1034 1035 1036 1037 1038 veja como esse diário é verdadeiramente mutável: no primeiro dia escrevi “quantos anos eu vivi até começar esse diário”. Imagine viver 2067 2068 2069 2070 2071 anos??? 2444 2445 2446 2447 então percebi minha falha sintática e corrigi ao seu sentido original. 2997 2998 2999 3000 3001 comecei pelo começo e acabei terminando pelo início.
29 de maio de 2022 (pp. 3-4)
Parei em 3.120 dias. Ou acho que parei, se não me embaralhei na contagem. Fico me perguntando como vivi esse terceiro milésimo centésimo vigésimo dia. Pelas contas, devia estar na metade dos meus oito anos, lá pra 2004. Podia estar inventando histórias com minhas (muitas) barbies, ou numa longa viagem de nove horas a caminho de Passos/MG, ou ainda numa noite sem luz escutando minha mãe tocar violão. Engraçado o que nos marca na infância. As pessoas que nos tocam. As lembranças que envolvem cada um, como pequenos pontos numa longa trama de vivências. Tenho que confessar que essa foi a única página do caderno que rasguei. Quis começar a fazer qualquer bobagem tipográfica, mas a verdade é que minha letra é completamente viva e teimosa: a cada pegar do lápis ela arruma uma nova personalidade e não há nada que eu possa fazer contra isso. Mas foi no rasgar dessa folha que eu resolvi que a cor que minha lâmpada emanava estava errada. E então, passeando pelos RGBs do celular, descobri a nova cor da melancolia. Que — nesse momento que vivo — é a cor que ilumina meus desenhos. Quando você passa muito tempo sob ela, seus olhos tentam calibrar os tons e o mundo fica todo rosa por um instante. Pós melancolia, um momento de aconchego, tal qual lembrar da infância.
9 de junho de 2022 (pp. 5-6)
Um estudo em vermelho. Sherlock Holmes a parte, essa foi a primeira dupla viva do caderno. Preencher uma página de pastel seco, pastel oleoso, canetinha, lápis de cor e sabe-se lá o que mais eu usei pra criar o meu mar vermelho dá nisso: toda vez que abria (e ainda abro) essas páginas, uma marca nova aparece na esquerda. Uns fantasmas vagam pela minha malha de retas. Odeio linhas retas, sabe? Minhas mãos não nasceram para traçá-las. Lembro da época que ainda achava que lixar madeira e desenhar cadeira era meu destino; sempre a mais sofrida da turma de desenho técnico. A régua samba da meu horizonte, os esquadros deslizam pelas minhas paralelas. Meia borracha por aula, no mínimo. Talvez por isso minha aversão a elas: uma prova que não consigo cumprir o que a perfeição geométrica exige. Meu desenhos eram sempre cheios de fantasmas de linhas que foram apagadas — com muito esforço; riscar de leve também nunca fez parte de mim. Acho que vou com muita sede ao pote, quero muito que aquela linha esteja lá, ponho todo meu desejo nisso. Talvez seja por isso que os fantasmas permaneçam: essa força de vontade não se esvai com facilidade. Diferente das minhas linhas, meus fantasmas em vermelho são a confirmação desse desejo. Ora, queria tanto que as manchas estivessem nessa página e a cobrissem por completo, que a tal força de vontade transbordou para fora. Um desenho vivo; uma folha volumétrica. Bom saber que nunca mais vou precisar desenhar outra reta (deixo a agulha e a linha fazerem isso por mim).
Essa é uma das minhas duplas favoritas do caderno, acho que ela resume muita coisa. Às vezes bate a indecisão do “será que eu escolhi o caminho certo?”. Vejam bem, eu amo o que eu faço. Amo pescar os espaços duplos esquecidos no meio das frases, amo ajustar cada caixote de cada página, amo o quebra-cabeça que é mexer com impressos e diagramação. Têm coisas que eu amaria mais. Se pudesse viver fazendo cartazes e discos de música, misturar arte e design em cada projeto. Tento fazer isso em toda brecha que tenho. Mas às vezes, sob a minha luz verde da melancolia, eu imagino as outras coisas que já amei e não persegui. Quem me conheceu na juventude sabe que era vidrada nas matemáticas. A física, em especial, sempre me deslumbrou. Mais do que isso: acho a física uma ciência bonita. Linda mesmo, dá vontade de chorar. Você vê como o mundo funciona, entende o quão irrisória é a nossa passagem por aqui. (Pensar nisso até me dá forças pra agir em certos casos: se a gente é tão insignificante, qualquer coisa que a gente fizer pouco importa). Eu prestei vestibular pra física. Passei, inclusive. Tracei outro rumo, mas de vez em quando me dá uma saudade de fazer conta. Quando eu vi a primeira foto do buraco negro, arrepiei o corpo todo. E arrepiou mais ainda porque foi uma mulher quem fez. Por vezes eu queria que essa mulher fosse eu. Em outra vida, talvez. Sei que agora, estou aqui buscando as melhores quebras nas linhas dos parágrafos e furando meus papéis com agulhas grossas demais para as minhas linhas de costura. (Pra quem não sabe, a quarta dimensão também é uma linha).
22 de junho de 2022 (pp. 9-10)
A luz e a escuridão ¶ Para Sabina, viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa, que cega, e a escuridão total. Talvez daí que venha sua repugnância por todo extremismo. Os extremos delimitam a fronteira além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, em arte como em política, é o desejo de morte disfarçado. ¶ Para Franz, a palavra «luz» não evoca a imagem de uma paisagem suavemente iluminada pelo sol, mas a fonte da própria luz: o sol, uma lâmpada, um projetor. Lembra-se das metáforas usuais: o sol da verdade; o brilho ofuscante da razão etc. ¶ Assim como é atraído pela luz, é atraído pela escuridão. Atualmente, apagar a luz para fazer amor é tido como ridículo; ele sabe disso e deixa uma pequena luz acesa acima da cama. No entanto, no momento de penetrar Sabina, fecha os olhos. A volúpia que se apossa dele exige escuridão. Essa escuridão é pura, absoluta, sem imagens nem visões, essa escuridão não tem fim, não tem fronteiras, essa escuridão é o infinito que cada um de nós traz em si (sim, se alguém procura o infinito, basta fechar os olhos!). No momento em que sente a volúpia se espalhar pelo corpo, Franz se dissolve no infinito de sua escuridão, torna-se ele mesmo infinito. Quanto mais o homem cresce na sua escuridão interior, mais sua aparência exterior encolhe. Um homem com os olhos fechados não passa de um refugo de si mesmo. É desagradável vê-lo, portanto Sabina não quer vê-lo e fecha os olhos por sua vez. Mas para ela essa escuridão não significa o infinito, significa apenas a discordância daquilo que vê, a negação do que é visto, a recusa de ver. — A insustentável leveza do ser, pp 94-95, de Milan Kundera (Companhia das Letras, edição de bolso de 2020).
[Essa é a minha passagem preferida. Sei disso porque volto a ela incessantemente. (Vejam só a marca do grafite no dia que fiz essas páginas ecoando no livro!) Acho que sou muito Franz e pouco Sabina. Em especial, quando Milan Kundera escreve que, para encontrar o infinito, basta fechar os olhos. Tão simples e tão verdadeiro. Acho que temos muito mais em nós do que pensamos.]
6 de julho de 2022 (pp. 11-12)
Constantemente somos cercados por escuridões. Violência, corrupção, doença, desespero. Mas não são dessas que venho devanear sobre. São as escuridões que existem dentro de nós, que lutamos contra todos os dias para provar para nós mesmos que somos boas pessoas. O ser humano é um ser de falhas, um ser de erros. E todos temos pensamentos obscuros por vezes: ciúmes, inveja, raiva, amargor. A primeira reação é expurgar esses sentimentos, certo? “Que coisa horrível de se pensar”. Algo como não deixar uma aranha se mostrar ao sol (uso aranha nessa metáfora, pois, para mim, ela é o ser irracional – e há controvérsias – mais desprezível do planeta). Mas pensar desse jeito faz parte do ser humano falho, é quase uma aceitação de que tudo bem não ser perfeito. Nunca estamos satisfeitos totalmente com nossas vidas ou corpos e isso não nos faz pessoas ruins. Só pensamentos positivos mascaram oportunidades de reconhecer falhas e aprimorar-mos cada vez mais. Fugir das escuridões pode prejudicar um belo crescimento pessoal. Recentemente me chamaram de pessoa ruim e pensei muito sobre o que isso significa. Não acho que eu seja uma, pra ser sincera, pelo simples motivo: pensamentos obscuros não passam disso, pensamentos. Acho que quando o ato de pensar se torna um ato prático, aí mora o perigo. Manipulação, agressão física, sabotagem. Essas sim são aranhas que deveriam permanecer na quina da parede debaixo do armário bem quietinhas como se não existissem. E até onde lembro, nunca pratiquei a obscuridade com ninguém, deixo ela aqui me incomodando por vezes. Acho que deve existir esse equilíbrio de sombra e luz para entender o que você deseja ser mudado na sua vida e como fazer isso de um modo positivo, que não machuque terceiros. Um aprender a mergulhar na escuridão, mas tomar cuidado pra não ficar na luz tempo demais (e, se for pra ficar, não esquecer de passar o filtro solar).
21 de julho de 2022 (pp. 13-14)
Just another phase you're shooting on through/ The whole world changes right around you/ You get fifty gleaming chances in a row/ And i watch you flick them down like dominoes/ Must feel good being Mr. Start Again. Quantas chances de começar de novo temos em nossas vidas? Do zero mesmo. Como uma autenticação ruim que pode ser enviada novamente para um Alexssander qualquer (imagino que não existam muitos Alexssandres). A vez que eu cheguei mais perto foi naquela transição escola/faculdade. Não sobraram-me muitos amigos do colégio; no final do ensino médio meus pensamentos eram “mais alguns meses e eu entro na faculdade pra poder ser quem eu quiser”. Não que eu desgostasse de quem eu era na época, mas eu não tinha muito espaço pra ser vista de outra forma. Quando você estuda desde os 5 anos com as mesmas pessoas, a chance de ser entendida de outro jeito é bem reduzida. E aí chega aquele momento de estar num lugar novo com pessoas novas e se perguntar: ok, quem eu quero ser agora? E mais: o que eu não posso fazer? Afinal, como mulher nossos erros ecoam cem vezes mais fortes do que os de um homem. Homem é perdoado fácil, a mulher é tachada de louca. Quantas chances a gente tem para começar de novo? Deve ser altamente libertador ter o poder de recomeçar quando necessário; de ter todos os seus erros aniquilados da história; de inventar uma nova personalidade quando conveniente. Deve ser muito bom ser o Sr. Começar de Novo. Não ser obrigada a aprender com seus erros; não precisar evoluir como pessoa; não necessitar entender o próximo. Eu só passei por isso uma vez, mas acho que é porque eu gosto demais de erros para apagá-los assim (diga não à borracha!)
27 de julho de 2022 (pp. 15-16)
Eu gosto muito de beber. Família mineira, sabe como é. Comecei a beber tarde até, pra juventude. A coisa que eu mais gosto do álcool é como ele faz seu inconsciente aflorar. Coisas que você achava que estavam resolvidas afloram, sua inibição vai pro buraco. Sou uma pessoa mais extrovertida quando bebo, fortaleço relações mais fácil. Não porque não queira ser assim normalmente, mas a vergonha acaba, o medo do julgamento externo (não se enganem: ele volta no dia seguinte). Essa dupla eu fiz numa madrugada pós bebedeira extrema. Não porque eu queria desenhar, mas porque era o combinado comigo mesma de todo o dia preencher o diário por 7 dias. Deve ter sido lá pras 4 ou 5 da manhã que eu rabisquei essas páginas. Não lembro. Achei apenas maravilhoso acordar no dia seguinte e me deparar com elas — pra mim, inéditas. Era como ver a arte de outra pessoa, uma Isadora que vive no mundo das ideias. Não entendi um terço do que escrevi; mas algumas coisas ficaram bem claras (beijinhos delícia, rs). Toda vez que abro essa dupla tento desvendar um pouco o que meu inconsciente estava me dizendo na hora. Beber não faz bem pro corpo, mas faz um bem danado pra (minha) alma.
4 de agosto de 2022 (pp. 17-18)
Fantasma, alma-penada, assombração, espírito, aparição, sombra. Qual nome se dá praquela pessoa que sempre aparece? Que fica ali, à espreita, no fundo do seu crânio. Que do nada surge, fica alguns instantes e se dissolve novamente. Que traz coisas que você preferia não lembrar e insiste em ressurgir memórias que poderiam ficar dissolvidas. Problema mal resolvido, trauma. Como se livrar do peso negativo que aquela pessoa tem, como transformá-la em luz? Motivo de terapia. Hoje, quero crer que sou alguém que resolve suas questões de cara. Desculpa? Desculpou, acabou. Não tem espaço pra rancor na minha vida, tem tanta coisa mais bonita para preenchê-la! Entretanto, eventualmente tem uma pessoa que não desculpa, desculpou, e cisma em permanecer com um arame em seu entorno. Ou alguém com quem não deu tempo de conversar, onde a desculpa nunca chegou. O que fazer nesses casos? Pra quem era só rancor e hoje é só resolução, ainda não sei lidar com o meio do caminho. E essas assombrações ficam ali, circulando silenciosas, esperando o instante de aparecer de novo. É só um vislumbre, um relance, quase uma espiada. Sofro de alma inquieta, existe cura?
23 de agosto de 2022 (pp. 19-20)
Sei não, a nossa cabeça por vezes precisa do vácuo. A gente existe porque pensa, mas viver sem o não-pensar é quase tenebroso. Sente-se muita culpa por tirar momentos de não racionalizar. Como se sempre precisássemos estar estudando, produzindo, lendo textos cabeça, vendo filmes perspicazes. Tirar um ou dois dias, quiçá um mês, absorvendo o vento parece quase um crime. Um desperdício de tempo. Ora, eu digo que ficar com a cabeça vazia é tão necessário quanto estar decorando frases Nietzscheanas para impressionar os colegas. A mente precisa de um tempo e um respiro para conseguir filtrar e absorver o que realmente é importante. Sou super defensora que todo conhecimento é válido, mesmo aquele que não tem um uso prático em nosso cotidiano. Mas tirar um momento de folga para o nosso cérebro não sobrecarregar a nossa alma. Respeitar a ânsia da mente pelo nada é não só sábio quanto um auto-cuidado com nós mesmos. Podem ter certeza que depois de uma longa semana produzindo ou após qualquer leitura densa e enriquecedora, vocês irão me encontrar assistindo A Múmia (de 1999, por favor) ou lendo o livro de mistério e assassinato mais vagabundo que eu puder encontrar. Questionou Nietzsche “quem, em prol da sua boa reputação, não sacrificou já uma vez – a si próprio?” Eu o respondo no brasileiro coloquial que o segredo de uma mente tranquila é consumir um pouco de droga, um pouco de salada.
25 de agosto de 2022 (pp. 21-22)
Hoje vou contar um pequeno causo que me aconteceu esse ano, lá em meados de fevereiro. Eu estava ficando com esse cara já havia alguns bons meses e senti que as coisas estavam um pouco estranhas. Não estava gostando do que eu tava sentindo e, como uma boa terapianda, achei melhor bater um papo para esclarecer tudo. Vejam bem, eu odeio ter DR, é uma das coisas que eu mais odeio fazer (o porquê vai estar explicado mais à frente), mas às vezes elas são necessárias. Pois bem, chamei o gato pra sair, passar o dia juntos e papear, coisa simples. Ele topou, sugeriu um dia e assim ficou combinado. No dia D fui perguntar onde/quando/como faríamos e ele me disse que estaria disponível das 15h às 19h. Das 15h às 19h. Feito dentista, lá estava eu com hora marcada na agenda do meu gato, apenas um pequeno compromisso que ele deveria resolver logo. (Fulano, se você estiver lendo isso, saiba que não guardo rancor! A vida é muito curta pra ficar guardando sentimento ruim dentro da gente). Agora uma pausa para um outro assunto que prometo fazer ligação com o meu gato dentista. Sinto que cada vez mais é “cringe” expor o que você sente. Dá realmente vergonha. A percepção que tenho é de que mostrar seus sentimentos é sinal de fraqueza. Deixar claro que está gostando de alguém é fazer a pessoa sair correndo pras montanhas em fuga. Englobo amizades nisso também, vida profissional, familiar. Sou muito difícil de me abrir naturalmente, acho que tenho que resolver tudo sozinha sempre. Por isso detesto DR, odeio ter que dividir meus sentires. Hoje então, é tudo nebuloso, o lidar com pessoas é como vagar por uma densa selva. Os sentimentos dos outros estão todos escondidos, à espreita, dá medo de ir atrás e investigar; você não sabe o que vai sair da folhagem espessa. Mas ao mesmo tempo, é um chamado que não dá pra recusar. A vontade de explorar essa selva é grande e forte demais porque as pessoas precisam de pessoas. E as pessoas sentem. Então por que é tão horrível falar sobre isso? Faço essa pergunta a mim mesma porque eu realmente odeio falar sobre, mas cá estou gastando meu tempo para discorrer sobre isso num ambiente onde várias outras pessoas coexistem comigo. A verdade é que se expor não deveria ser sinal de fraqueza, mas sim de força já que, uma vez que você se expõe, deixa uma fatia de você pro outro. E este outro pode fazer o que quiser com ela (às vezes isso machuca, por isso a força). Acho que deveríamos estabelecer um momento diário para que essa selva densa clareasse e as pessoas pudessem se expor à vontade, sem medo de julgamentos. Sugiro das 15h às 19h, o que acham?
15 de setembro de 2022 (pp. 23-24)
Perdi minha aula de spinning hoje porque estava dormindo. Um pouco por exaustão dos dias que se passaram sim, mas principalmente porque estava imersa num sonho muito vívido e intenso. Acho que se sonhar fosse uma profissão, eu seria milionária. Durante a quarentena, dominei a arte de controlar meus sonhos, acordar e voltar a eles. A vida era tão mais interessante dormindo. Por vezes minha mente ainda me proporciona ocasiões tão fantásticas que eu me pergunto se realmente vale a pena despertar. Às vezes durmo por não ter nada pra fazer e espero qual será o próximo filme que vou viver na minha cabeça. Sonho tão intensamente que a cada três ou quatro dormidas duvido que aquilo só foi mesmo um sonho. Gosto de pensar que sonhos são uma janela para um outro você, que vive em outro lugar, e nos espiamos toda noite. Sim, gosto de pensar nisso. Me deixa feliz. Tenho vidas muito interessantes por aí. Meu único aviso aos navegantes das terras de Morfeu é que não pode-se esquecer que nem apenas de sonho vive uma pessoa. Na quarentena foi justamente o meu maior desafio: lembrar de viver. Como, não é mesmo? Trancada dentro de casa, com medo da morte. Mas justamente tudo o que passamos foi em prol da vida; de trazer momentos especiais pros nossos outros poderem sonhar de volta. O desenho me salvou nessa época e agora, que já é permitido viver de novo, trato o sono menos como um escape, mas de novo como um descanso (com entretenimento garantido, por que não?) Desenhar exausta é muito curioso, você se sente flutuando enquanto joga todo o peso do cansaço no papel de forma leve. Contraditório, mas muitos momentos da vida são. Não vou poder dormir por 82 horas hoje, mas os 40 minutos que me fizeram perder o spinning já valeram o alô às outras Isadoras.
27 de setembro de 2022 (pp. 25-26)
Estou sempre aqui falando que sou uma artista de momentos, relâmpago, que quando sinto muito alguma coisa tenho que vomitá-la no papel. É uma meia verdade. Quando sinto muita tristeza, frustração, ansiedade, raiva, desespero, as formas fluem tranquilamente até tomarem seu lugar no espaço. Mas e quando uma onda de felicidade me atravessa? O sentimento mais difícil de representar pra mim é esse. Aquele calor que dá no peito, o sorriso que arregaça sua cara, o arrepio que circula pelas extremidades. Feliz. Tão feliz, irradiante, que eu não quero jogar esse sentimento pra fora, quero mantê-lo aqui dentro, perto de mim. O máximo que puder. Faz sentido eu ter tanta dificuldade de representar a felicidade, notei isso agora, escrevendo esse texto. Momento de alegria genuína são raros, guardo todos com carinho. Podem ser instantes bem estúpidos, na verdade. Mas quem somos nós para escolhê-los? Eles que nos escolhem, nos atravessam sem pedir licença; um baita de um atropelo. Você não vê de onde veio, muito menos quando vai embora. Por isso a vontade de sentir aquilo o tempo que for possível. Talvez eu seja sim uma artista de tristezas. Por que não? Melancolia é um sentimento bonito, olha quantas canções são feitas a partir dela. Coisas que tocam porque todos já a provamos pelo menos uma vez. A felicidade já não sei. Fiquei triste de pensar nisso. E mais triste ainda de lembrar de todas as pessoas que passaram no meu caminho que atrelam a felicidade a outra pessoa, a um objetivo. Difícil mesmo é ser feliz sozinho, mas quando você consegue, não tem página de caderno que supra essa sensação.
16 de outubro de 2022 (pp. 27-28)
Estou sentada no terraço do meu prédio olhando pras infinitas janelas de são paulo, ouvindo uma playlist magnífica. Meu bloco de papel e meus lápis estão na espreguiçadeira juntos aos meus pés. Por vezes sinto um impulso de pegá-los, mas mudo de ideia. Não é hora ainda. A hora agora é de sentir o vento fresco que me assopra e de imaginar as milhares e milhares de vidas que existem dentro de cada quadradinho negro desses paralelepípedos que vejo em minha frente. Penso na noite que tive ontem, cercada por pessoas que amo enquanto amava a vida. Por vezes a gente esquece de amar a vida, ficamos tão condicionados em nossa rotina, seguindo os mesmo passos. Mas eventualmente surgem pequenos instantes que nos faz lembrar que estamos vivos e sentir o calor do sol no rosto é precioso. Lembro de quando fiz essas páginas, ainda estava num acordo comigo mesma de desenhar todos os dias. Esse dia, no entanto, não deu pra desenhar. A vida chamou mais alto. Me recordo de escrever essa frase e deitar na minha cama com um sorriso no rosto. Sorriso este que ontem ficou estampado na minha cara por horas e horas. Curioso que são pequenas coisas que me trazem paz. A visão dos meus três primos andando de mãos dadas na minha frente, é uma forma tão simples de amor. Agora sinto as gotas da chuva que está pra cair, a vontade é de ficar debaixo dela por um instante. Amo a chuva, amo a paz que ela traz. Simples. Mas um tanto milagroso, não acham? Água que cai do céu. Normalmente odeio o clima de São Paulo, as quatro estações em um dia. Hoje, não me incomoda. Calor sem brisa, frio quando ela bate. Deixe bater, eu digo. Arte é vida, mas às vezes a vida ganha da arte.
25 de outubro de 2022 (pp. 29-30)
Diga-me quem és que te darei uma canção. Se tivestes algum causo, história, epopeia, flerte, romance, desavença, aventura, deslumbre, comigo, tenhas certeza que terei tua música guardada em minhas memórias. Português provinciano à parte, se quiser, me pergunte que te direi sua música. Os momentos da minha vida são todos baseados em canções. Não propositalmente, elas grudam em lembranças como chiclete. Ou pior, como fita crepe vagabunda em arte sobre papel. Normalmente não tem nenhum significado, como depois da quarta tatuagem. Às vezes era um disco novo que saiu e fiquei ouvindo naquela época, outras é uma música que tocava enquanto eu dançava feliz com uma companhia ou outra. Mas os sons pra mim têm o mais forte poder de memória; de vez em nunca acho que descobri como viajar no tempo. Viagens estas que nem sempre são boas e me vejo procurando por pessoas que hoje não me existem mais em algumas de minhas canções favoritas. Em junho estava numa festa e calhou de começar a tocar uma dessas. Me vi sentada num banco qualquer escrevendo para uma pessoa (no bloco de notas, não sou de mandar mensagem para qualquer um depois de 5+ taças de vinho). Minha amiga/esposa me viu e disse coisa que já havia dito várias vezes: “você desperdiçou músicas muito boas com ele.” Talvez sim. Talvez não. O momento do grude chiclete foi tão íntimo, tão genuíno; foi a última vez que me senti amada. (Não disse que a pessoa me amou, veja bem. Acho que você não precisa amar uma pessoa para fazê-la se sentir amada). O que uma vez foi uma música de amor, depois virou uma música de tristeza e hoje é uma música de carinho. A mesma memória em constante metamorfose. Coisa linda que é a nossa percepção do tempo, não acham? Tudo sempre se transforma. Uma grande colagem de fragmentos de lugares, coisas e pessoas que coabitam nosso eu. Eu este que tem uma lista de canções para cada fragmento, uma constante coletânea com os melhores hits de sucesso.
6 de dezembro de 2022 (pp. 31-32)
Que mulher bonita que eu tô hoje. Que linda que você tá! Nossa, você emagreceu, hein? Tá linda. Perdeu peso, tá tão linda. Quanto tempo eu não te vejo, emagreceu muito, tá linda! Preciso que você perca 7% do peso pra refazermos os exames. Separei esses shorts pra você, não cabem mais em mim, estão muito largos. Você só tá inchada de álcool, é só ficar sem beber duas semaninhas que volta ao normal. Mas você não é gorda. Vamos subindo a dose do Saxenda de duas em duas semanas e depois passamos pro Ozempic. Tô com fome. Vamos fazer macarrão? Quer pipoca? Que fome. Vou ficar na salada hoje, vida fitness. Vou pedir uma pizza, quer também? Tô meio enjoada. Evite comer na rua, não dá pra controlar as calorias em restaurante. Vamos jantar fora hoje? Meu aniversário vai ser nesse restaurante. Descobri um restaurante novo maravilhoso, vamos? Não tem nada pra comer em casa, vamos pedir? Usa esse aplicativo, pese tudo antes de comer. Quantos gramas de salmão você acha que tem aqui? Quanto é uma porção individual de macarrão Google pesquisar. A partir de janeiro vou viver que nem uma vaca, só vou comer alface. Evite beber cerveja, se for pra beber, prefira drinks. É só tomar gin com tônica zero. Me vê uma caipirinha sem açúcar? Vamos pedir cerveja, quantas pra cada um? Malhei todos os dias essa semana. Malhação não vale, você tem que fazer aeróbica pra emagrecer. Odeio correr. Vou correr hoje. Perdi o spinning, vou fazer no sábado. Faço ioga todo dia, eu amo. Ioga não emagrece, você tem que começar a correr, faz bem pra celulite. Celulite é sexy! Esse creme é maravilhoso pra celulite. Você tá precisando voltar a fazer drenagem, hein? Emagreceu, tá linda! Não te empresto meu short porque vai ficar largo. Você tá falando que eu não tenho bunda? Não, tô falando que a minha é enorme. Você é muito gostosa. Caralho, você é muito gostosa. Não dá pra te comer nessa posição, sua bunda é muito grande. Olha, você não vai conseguir me comer nessa posição, minha bunda é muito grande. Todo short que eu compro fica largo na cintura e apertado na bunda. Toda vez que ando de short no calor, minha coxa assa. Olha o tamanho da sua perna do lado da minha. Queria ter coragem pra andar só de topinho que nem você. Quando eu vou na piscinha, ajo como se me sentisse bem com meu corpo. Fake it until you make it. Eu tenho muita bochecha. Efeito colateral de bichectomia Google pesquisar. Não faz isso, as pessoas queriam ter uma bochecha igual a sua. Nossa, eu tô muito gata. Nossa, só tem mina padrão aqui. Não tô me sentindo bem. Ele só pega mina padrão. Acho que ele tinha vergonha de mim, por isso que só me pegava escondido. Você é muito gostosa. A gente encaixa tão bem. Sua bunda… Amei sua calça. Te empresto! Não vai caber em mim. Você é 42 ou 44? Pega essa roupa sim, daqui a pouco você emagrece e cabe. Guardo um estoque de roupa pra quando eu estiver gorda. Para com isso, você não é gorda. De acordo com o IMC, eu deveria pesar isso. Mas eu não peso isso desde que tinha 13 anos. É porque sua estrutura óssea é grande. Faltam só 10 quilos. Você não pode deixar a sociedade te definir. Você precisa se amar do jeito que é. Você precisa se aceitar, você é linda do jeito que você é. O importante é se sentir bem consigo mesma. Que canhão que eu tô hoje. Não tô afim de sair de casa. Não tô me sentindo bem. Tô exausta, não vou malhar hoje. Eu tô fazendo o melhor que posso. Devia ter malhado hoje, por isso que não emagreço. Emagreceu, hein! Tá linda. Tá linda. Tá linda.
13 de janeiro de 2023 (pp. 33-34)
O passado é feito de fragmentos. Ora, raríssimas são as pessoas que se lembram de absolutamente tudo que viveram com detalhes vívidos e não-destorcidos pelo tempo (é uma patologia, inclusive; chama-se hipertimesia). Elas vivem mais tempo pensando no passado do que nós, réles mortais. Mas o quão bom é ficar preso em memórias? Acho que foi por isso que a evolução não permitiu que essa condição vivesse em todos nós; para que pudéssemos viver em paz sendo enganados por nossas próprias lembranças. Conforme o tempo passa e cura certos traumas, a capacidade de perdoar aumenta. Com ela, nossa probabilidade de cometer os mesmos erros de novo e de novo. Dizem que o corpo das mulheres grávidas liberam hormônios que as fazem esquecer da dor do parto para que elas tenham filhos novamente. Que coisa linda a natureza, sempre nos fazendo de trouxa (nada mais justo, visto que a maltratamos tanto). Penso nesses fragmentos por vezes, em quantos cacos guardo de cada pessoa. Pequenos tesouros que não se reconstroem mais. Como garrafas de cerveja quebradas refletindo a luz do sol no meio da rua. Tesouros urbanos. O que escolhemos lembrar porque foi bom, o que mudamos para facilitar a dor. E esses pedaços se embaralham depois de um tempo, um quebra-cabeça que não se encaixa. Uma letra de música picotada, sacudida, remexida, e remontada, criando novas estrofes e outros significados (ou não-significados). Nesse dia, ouvi essa música de novo e de novo e de novo, até que quis descobrir em qual novo contexto poderia encaixá-la. Deixar o acaso rearranjar as estrofes para que me dissessem algo novo. Me disseram. E eu ouvi.
7 de fevereiro de 2023 (pp. 35-36)
Fazer um macarrão com molho de tomates. Escutar uma lista de músicas selecionadas “praqueles dias”. Olhar a chuva cair. Tomar uma profunda taça de vinho. Deitar na cama e olhar para o meu redor. Tirar um cochilo. Sair para uma longa caminhada. Preparar uma xícara de chá. Escrever mil palavras e nunca mostrar para ninguém. Enfrentar meu tapete de ioga. Perceber o quão mais alongada estou do que há um ano atrás. Tomar banho no escuro. Revisitar fotos e vídeos de momentos felizes. Chorar por vinte minutos. Comprar papel algodão. Assistir a uma série que já assisti outras dez vezes. Ligar para minha mãe e ouvir ela falar sem parar. Prestar atenção nas letras das músicas. Bagunçar meu quarto até uma coisa bonita surgir pelas minhas mãos — estouros do meu plástico bolha. Por vezes preciso me enrolar nele. Um gesto de autoproteção meu comigo para mim e eu mesma. É importante falar com outros e pedir ajuda. Demonstrar vulnerabilidade, etc etc. Mas não é possível depender do outro sempre. O outro pode não ter empatia pelo que estou passando pelo simples motivo dele nunca ter passado por situação parecida. O outro pode não saber o que dizer ou como agir. Ora, às vezes o outro só não está afim de lidar comigo. Tantas coisas a se preocupar, suas próprias questões. Prometo que não vou parar de falar, mas há momentos que preciso do meu casulo de polietileno de baixa densidade. Ploc ploc ploc. Estourando minhas armas de proteção. Por algumas merdas a gente precisa passar sozinho.
28 de fevereiro de 2023 (pp. 37-38)
A palavra "erro" vem do latim (errare). Significa – corrijam-me se meu Google estiver errado – perder-se, andar sem destino, cometer uma inadequação, transgredir. Quando li essa definição, entendi porque gosto tanto de falar que meus trabalhos são errados. Realmente são; frequentemente me perco no que estou fazendo. Deixo minhas mãos andarem livres pelo papel e nunca apago nada. Cada traço que surge em um lugar não-planejado era para estar ali desde o início, quem sou eu para extingui-lo de sua existência? O inconsciente nos conhece melhor do que nós mesmos, prefiro deixar que ele me guie para me expressar em formas. Devo ser ligeira para acatá-lo, por isso meu espaço de trabalho é sempre caótico. Não lembro exatamente quem disse que o caos é a origem de tudo e tudo tende a voltar ao caos. O que me lembro é que fiquei maravilhada com todos os exemplos de que isso é verdadeiro. Se não se limpa uma casa, ela empoeira, suja, se transforma. Fungos a habitam, vegetação cresce pelas ranhuras. Tudo volta ao caos, o único deus que eu acredito. O primordial, de acordo com Hesíodo. E se tudo é caos, o resto é manutenção. Estamos sempre lutando contra essa força maior do que todos nós, mas que um dia nos uniremos a ela. Sinto seu gosto toda vez que pego num lápis, deixo que leve-me por um instante. Sabe-se lá o que vou encontrar do outro lado.
4 de maio de 2023 (pp. 39-40)
“‘Álcool é coragem líquida’. Talvez seja mesmo, visto que só me sinto mais confortável em produzir sob o efeito de algumas taças de vinho. Delas, venho lhe escrever esse punhado de sentimentos que nada têm a ver com você. Minto descaradamente. Essas palavras são suas, completamente suas, mas em nenhum momento pediu por elas. Nada têm a ver com a sua vida, em nada vão te afetar (até porque, muito provavelmente, não chegarão até você). Estará seguindo sua vida sem jamais saber da existência delas, porque minha dose de coragem foi apenas para colocá-las para fora, embora nunca sejam enviadas. Sinto falta das cartas, mesmo não tendo as vivido. Eram como diários que você enviava aos céus sem saber se haveria resposta. As coisas hoje são tão imediatas que não existe mais o momento da espera. A espera agora significa silêncio. E o silêncio, rejeição. (…)” Esse desenho foi feito para uma pessoa. O texto, para outra. Mas ambos falam o mesmo em diferentes línguas. Há quaisquer sujeitos que grudam em seu cerne. Por mais tempo que passe, por mais que você nem saiba quem é esse tal sujeito agora, seus sonhos voltam pra eles. Seus pensamentos mais profundos. E por vezes seu corpo, sua fala. Como um ímã, precisa-se de um certo esforço para manter-se longe. Eventualmente, a distância é necessária e o silêncio doloroso. Mas a dor passa, a pessoa não. Grudada como o queijo da parmegiana na assadeira de vidro. Deixa-se de molho, esfrega-se com bombril, mas aquele pequeno ponto preto de queimado continua lá. Não intacto, fortemente rasurado, lá. Isso não impede que outras parmegianas sejam assadas e que outros rastros de queijo apareçam ocasionalmente, vejam bem. Parece que estou ficando com fome de novo.
12 de julho de 2023 (pp. 41-42)
Estive adiando para postar essas páginas. Queria esperar um dia desamanhecido para escrever o texto que as acompanha. In(felizmente), faz tempo que não acordo triste. Talvez tenha estado muito ocupada, talvez tenha estado feliz. Talvez a felicidade seja estar ocupada. A última vez que me lembro de estar triste foi por estar gripada e ter que ficar uns dias quieta dentro de casa. Parece que meu corpo anda ansiando pela rua, nem que seja para percorrer o mesmo caminho que percorro todos os dias. Ver os mesmos postes, as mesmas árvores, os meus rastros. Dar bom dia pros mesmos porteiros, ver os mesmos cachorros mijando nos mesmos canteiros. Tem uma certa beleza no ordinário. Uma beleza meio melancólica, por um lado. Um desânimo do mesmo que não muda, um conforto de saber que o conhecido sempre estará lá. Essa tristeza que por vezes nos amanhece pode ter origem no comum. A eterna vontade de novidades, o clamor pela mudança. Tem gente que odeia mudança, sei disso. Que a rotina traz estabilidade física, emocional. E traz mesmo. Mas eu não quero viver de estabilidade. Quero altos, baixos, quero ficar triste, quero rir de mim mesma e passar por cada uma que só serve pra virar história de bar. Nem sempre temos o que queremos, e isso dá tristeza. O estável. Mas minha tristeza passa logo, dura três dias no máximo. Ficar triste cansa também, enche o saco. E, a troco de nada, um dia a rotina passa a ser alegre e os postes parecem novos de novo. Papo de doido? Talvez, mas com certeza papo de bar (me chamem, tô precisada!!!)
21 de agosto de 2023 (pp. 43-44)
Vos proponho 1 leitura e 1 desafio. Pegue “Carta a Mondrian” de Lygia Clark e descubra-a (ou redescubra, caso já tenha sido tocado por essas palavras. Sei que cada vez que leio, encontro novas sensações escondidas por entre as letras.) (Meu pai diz que se pudesse ter escrito uma música, seria “Tiro ao álvaro”. Eu digo que se pudesse ter escrito algum texto, seria esse.) Depois disso, pegue um papel e algum objeto escrevente, apague as luzes, feche os olhos e escreva. Escreva o que vier na telha. Escreva sem pensar no que se escreve. Escreva sem se importar se palavras se esbarram na folha de papel. Escreva. Quando a escrita parar de te atravessar, ligue as luzes. Esse é o seu manifesto dos olhos fechados. Esse manifesto é perigoso. Ele quase deixa que você o desvende, mas só quase. Ele é leal também, pois não revela seus segredos nem para você mesma. Suas frases estarão ali guardadas, algumas de fácil acesso, outras perdidas para sempre. São frases que só se permitem surgir na solidão do infinito. Afinal, o artista é um solitário. Não importam filhos, amor, pois dentro dele ele vive só. Só irremediavelmente só. Essa solidão cansa. Estou um tanto cansada ultimamente. Me redescobrindo em minha própria companhia. Cansada de ouvir minha voz ecoando dentro da minha cabeça. A voz que vocês ouvem em pensamentos é a mesma de quando falam? A minha não é. Parece que sou duas pessoas: uma que pensa, uma que externaliza. Pode alguém nos conhecer por completo? Acredito que não. Acredito que devemos sempre ter uma parte de nós só nossa, escondida no apagar de luzes, perdida numa folha de papel rabiscada onde ninguém vai ler completamente. Alguns segredos merecem ser segredos. E um segredo eu vou te contar: Às vezes, eu me sinto tão desesperada, porque no momento em que “checo” este problema a solidão, o frio, o “medo do medo” me envolvem com todos os seus braços e procuram fechar este novo tempo que desabrocha na minha forma interior, amassando pétalas frescas e delicadas que levarão novo tempo para se abrirem como se abre um olho devagar, depois de ter levado um bom murro. (Lygia: eu sempre gosto de você.)
1 de novembro de 2023 (pp. 45-46)
ODE A UM CÔMODO
As janelas são velhas, o trilho desloca toda vez. A vista fica bem na altura da copa das árvores, um verdinho raro no centro de São Paulo. A persiana de metal faz um barulho alto que escuto sempre que algum vizinho fecha sua própria. Já deixei alguns arranhados no chão de taco (que tem uma padronagem da qual gosto muito). Na porta, preguei um prego sem saber o que iria pendurar. A maçaneta é original, lá dos 195e qualquer coisa. Ela não tranca e a chave às vezes emperra na fechadura. A escrivaninha e a cama não couberam no elevador e tivemos que subir pelo de carros mais dois lances de escada. Só depois que descobri que as gavetas saem dela — e a que eu mais uso vive desencaixando. Lá, guardo documentos, papéis, lápis, pastéis, canetas, tintas, livros e livros de sebo e todo tipo de parafernália eletrônica. Pela cadeira de rodinhas me desloco pelo quarto e me divirto, tal qual criança. Tenho uma tv na parede que minha mãe fala que fica muito longe da cama. Junto a ela estão: uma placa de metal que diz “merda” em francês, uma reprodução de “female artist” de Ernst Ludwig Kirchner, uma reprodução de “female artist” de Isadora Bertholdo, uma moça rosa num fundo verde que ganhei de aniversário do meu maior amigo e um suporte de ukulele que está vazio porque vendi o meu para uma médica que foi fazer residência em Nova York e precisava aprender ukulele para isso. No canto, guardo caixas com mais papéis e rolos de mais papéis. Por vezes sento na cômoda que fica embaixo da janela para ver a rua. As mesinhas de cabeceira guardam um punhado daquelas coisas que você nunca joga fora porque acha que vai precisar e nunca precisa. Meu violão fica num canto, esperando a hora que vou tocá-lo (uma vez a cada seis meses me parece apropriado). A cama foi desenhada por um amigo amado e ela comporta o melhor colchão que já escolhi. Fiquei mal acostumada com a qualidade dos meus travesseiros e um deles é uma tradição familiar. Os quadros em cima da cama são ilustrações botânicas que colei com muita dupla face e talvez nunca mais saiam da parede. Odeio que a luminária do teto tem luzes brancas e nunca consegui abri-la para trocar, mas as laterais da cama são daquele amarelo bom de pegar no sono. Deitada, fico vendo os padrões que os faróis dos carros deixam no teto pela persiana. As prateleiras, que carregam os livros que não couberam na estante da sala, foram colocadas por um faz-tudo que riscou minha parede recém-pintada de rosa velho de caneta bic. Tive que tirar tudo e aparafusar tudo de novo com uma chave de fenda (nunca passei tanto calor num frio de 10º). Os armários foram reformados porque, aparentemente, odeio armário com fundo de madeira (as cores das roupas ficam distorcidas). Ouço cada pio que perpassa na rua. Todos os carros, gritos dos loucos, gangues da bike, caminhão de lixo, limpeza da praça, samba de terça a domingo e eletrônica quando esse cessa (mas nunca passa das 23h). Ouço meus sonhos, tão altos que são quase impossíveis de acordar. Ouço até meus pensamentos.
Esse desenho foi feito quando tive Covid e fiquei isolada no meu quarto por sete dias e não aguentava mais olhar para as suas paredes. Hoje, ele está escondido sob papel branco e mal posso esperar para reencontrá-lo.
21 de fevereiro de 2024 (pp. 47-48)
Digamos que esteja ainda pouco deprimida com o fim do carnaval. Pouco, muito, quiçá. Fora essa gripe de viver demais que não me abandonou ainda. Viver é fantástico, mas só é assim por conta das companhias que te permeiam. Não estou dizendo que é impossível ser feliz sozinho (com todo respeito, Tom Jobim), mas uma boa amizade sempre ajuda. Sinto que conforme ficamos mais velhos, esse número decai drasticamente. As vidas mudam, as pessoas mudam e se mudam, outras casam, filhos, trabalho, nada é mais tão simples quanto consultar o nome do colega na agendinha da escola e pedir pra mãe marcar um dia de brincadeira. Bons tempos. Prezo muito minhas amizades, tive minha cota de decepções esses anos e as que tenho hoje me são muito caras. Tão caras que às vezes me endividam. No dia que fiz esse desenho, ao contrário do teor do texto que agora escrevo, foi um dia de decepção tão grandiosa que rendeu algumas páginas até que eu conseguisse acalmar meu coração. Tem gente que não compreende que a dor de uma amizade por vezes é maior do que a amorosa. Para mim, sempre foi. Coisa boa da terapia é ter o mantra de que não podemos mudar as pessoas, só podemos mudar como nós nos relacionamos com elas. Até o ponto em que às vezes essa relação não faz mais sentido, e tudo bem. Melhor se agarrar às coisas boas do que forçar algo que já não existe mais. Se agarrar àquelas companhias que te fazem vibrar como um dia de carnaval, que por mais que não estejam tão próximas como costumavam ser, te fazem sentir que o mundo é de vocês e há de quem tentar provar errado! Gostei de não ter pesado esse texto como o desenho foi pesado pra mim, acho que amadureci um bocado desde então. Morar longe da maior parte das minhas amizades trouxe novas perspectivas de lidar e se dar. Mas uma vez ao ano, sempre teremos o carnaval. E não adianta tentar me levar pra BH, Olinda ou Salvador, meu lugar é o Rio de Janeiro junto de todos aqueles que me querem bem, mesmo que só de tempos em tempos. Cada momento é precioso, será mesmo impossível ser feliz sozinho? O resto é mar, é tudo que não sei contar…
28 de maio de 2024 (pp. 49-50)
Faço drama sem querer. Há momentos em que falo ou escrevo algo e, depois de externalizado, me odeio um pouco. “Que feiura, Isadora, ninguém gosta desse tipo de gente”. Sei que eu não gosto. Embora todo drama que derrame acidentalmente não venha com intuito de fazer o outro se sentir mal, mas apenas como um respingo do que está acontecendo por dentro. Belíssimo é quando entendemos como e quando expor o que sentimos, e sábio é saber se aquilo realmente precisa ser exposto. Por vezes o que nos vem ao coração pode ser travado pela mente, como num debate dentro da própria cabeça. Contudo, sim, há momentos em que os argumentos do coração escapam. Precisam fazer um apelo ao público. Ter aquele minuto de vítima. Angariar seguidores. Ser acolhido. Mesmo que ninguém realmente goste de vítimas e seus pobres suspiros. “Reaja!” sempre que acidentalmente derramo tais reclamunhos, sinto vergonha e reajo em seguida. Me afasto dos outros e me isolo, não como forma de afirmar a coitada em mim, mas para reajustar os pensamentos e repensar as prioridades. Quase como uma reconfiguração pessoal. Nesses momentos solitários, respiro, me distancio, enxergo outras perspectivas – minhas, alheias – e volto a quem gostaria e gosto de ser. Meu analista há algumas horas me disse que não condiz comigo o aspecto de coitada e escolhi acreditar nele. Por mais que o desabafo com um terceiro ou quarto seja importante, quem dá conta de mim sou eu mesma. Descobrir isso foi um presente que não esperava receber. Hoje, busco em mim o que me falta deles.
27 de junho de 2024 (pp. 51-52)
“Me afastei com medo da nossa distância aumentar, que contraditório… ¶ E aumentou, as relações acabam, mas os sentimentos estão sempre na memória, congelados esperando para reaquecer, mas sem pressa. ¶ É que a maioria sofre com o amor não correspondido, e só agora descobri que eu sofri com o contrário. ¶ A minha vadiagem, a sua cautela e principalmente o nosso silêncio foram a fórmula errada. ¶ Ah se os olhares falassem ao invés de só se olharem, mas seria injusto com as outras, pois com elas eu falava sem brilho no olho e com você o olho brilhava tanto que travava a língua. ¶ Afinal, o tempo cura, mas pode machucar quem tem prazer com a nostalgia e alimenta a esperança.” ¶¶ Estive atrás de insumos, papelâncias e cacarecos para minhas obras da penúltima vez que estive no Rio. Calhei de abrir a lata onde guardava bilhetes, passagens, ingressos, momentos e memórias de uma Isadora que um dia foi. Abri, e tinha certeza que ia me deparar com esse bilhete (carta? poema? composição.) que um dia você me escreveu. Não tive coragem de usar, mas pode ser que amanhã tenha. Te peço desculpas, pois da última vez que falei com você (e faz tempo, mais de vários anos) menti e disse que não sabia onde estava. Mas sabia, sempre soube. Por algum motivo, queria que essas palavras fossem minhas e só minhas. Nem mesmo para você que as escreveu estava disposta a emprestar (acho que a gente nunca fez bem um pro outro). Por vezes penso na pessoa que fui e comparo com a que sou hoje. Não deveria, mas assim faço. A eu de agora, às 23:35 (horário exato, e olha que odeio múltiplos de 5 no relógio) do dia 5 de maio de 2024, teria agido de formas diferentes em muitas passagens que tive. Embora se não tivesse agido de tal modo, pudesse ser uma eu díspare por completo. Talvez. Sonhei com você três vezes desde que recuperei sua (ou melhor, minha) composição. Sonhos estranhos, que misturam uma vida longínqua com a que tenho hoje. Meu senso de direção foi perdido por completo. Indivíduos que nada partilham emaranhados em contextos que só o inconsciente poderia proporcionar. Acordei desses sonhos sentindo que havia feito um nó na linha do espaço-tempo. Que coisa louca é a vida. Espero que você esteja bem e que esteja feliz, onde quer que more seu coração. Saiba que você me moldou de muitas formas; que quando certas músicas tocam me transporto para a época em que habitávamos o mesmo planeta; que vez ou outra você brota em meus pensamentos e some tão rapidamente como surgiu — acho que será assim para sempre, embora tenha em mim que nunca mais nos veremos. Nos meus sonhos, quem sabe. Te espero lá.
...
Rabiscos