Artista visual
São Paulo/SP
A partir do meu gesto – espontâneo, incontrolado, sujo, particular –, desafio o cânone por meio de colagens e desenhos. Me contraponho à imutabilidade, à precisão, à divindade e à universalidade estabelecidos por essa força, dando foco ao erro e evidenciando o caráter improvisado de cada composição. Me aproprio do imperfeito e do acaso transformando o processo na própria obra.
Carioca, nascida em 1996, se formou em design gráfico na PUC-Rio (2019). Cursou diversas aulas no Masp e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde também fez acompanhamentos com Anna Costa e Silva e Fábia Schnoor e participou da Mostra Escola de Artes do Parque Lage (2021). Em 2022 ingressou na pós-graduação Práticas artísticas contemporâneas na Faap, de onde se originou sua primeira instalação site-specific (Minha mente não é oficina do diabo, 2023). Os registros fotográficos foram exibidos na exposição coletiva "Em construção já é ruína" (2023), no espaço de arte Canteiro. Hoje, faz parte do acompanhamento artístico com a artista Lais Myrrha, que fez a curadoria da exposição coletiva "As coisas estão no mundo" (2024).
TRABALHOS
Meu sonho, acabar em sebo
Ode às coisas perdidas (como nós dois e essa foto que achei no chão de Paris)
Achei meu primeiro cabelo branco (20/5/24)
Gastos, cobranças e superficialidades
Paguei oitenta reais na minha primeira bíblia
Excertos
Minha mente não é oficina do diabo
Rastros
O leão de tanto urrar desanimou
Triste/amargo
PUT IN MOUTH
Janela para o mundo exterior
Cacarecos
Rabiscos
Melancolia
Estranhezas V
Estranhezas IV
Estranhezas III
Estranhezas I
TEXTOS
Zona de conforto (23/3/2024)
Minha mente não é oficina do diabo: processo (8/11/2023)
Horror vacui (24/7/2023)
Átimo (14/7/2023)
Quarto (16/6/2023)
Rastros: contexto (27/5/2023)
Pessoa que quero bem (24/5/2023)
Gestos, coincidências e desvios (1/12/2022)
A urgência em palavras (28/11/2022)
Textos honestos (1/5/2022)
Azul (6/9/2021)
EXPOSIÇÕES COLETIVAS
As coisas estão no mundo (2024)
Em construção já é ruína (2023)
Mostra Escola de Artes do Parque Lage (2021)
CONTATO
isabertholdo@gmail.com
@isadorabertholdo
Átimo
14 de julho de 2023
Este texto tem validade curta de prazo indeterminado. Tudo o que se segue pode não valer de nada amanhã ou depois. Posso ser outra. Posso não ser. Sinto muito por isso. Sinto muito. O sentir que permite essa eterna mudança de estados. Sejamos honestas: ninguém quer permanecer o mesmo ao longo da vida. Vivemos justamente para transformarmos, para renascermos a cada dia. Hoje, escrevo este texto e pode ser que perpetue por algum tempo. Caso não, escreverei outro e outro; um punhado de palavras a cada átimo. Venho pensar em voz alta sobre meu processo. Examiná-lo e deixá-lo às claras para mim e para quem se aventurar a ler. Mas a terceira pessoa torna-se irrelevante enquanto escrevo; dedicar minhas angústias e desejos a alheios pode afetar o quão sincera devo ser. Estar desnuda é ser o que se é.∆ Logo, excluir a outra deste clima ritualístico é essencial, por mais que minha produção em arte seja sobre criar identificações. Mas vamos por partes. pausa para o vinho; instrumento importante para a alteração dos sentidos, assim como as luzes artificiais sob as quais produzo e que modificam a percepção do mundo ao meu redor. acabo de tirar um mosquito da minha taça, parece que alguém mais estava precisando banhar-se em suco de inspiração. sempre me sinto poeta nessas ocasiões◊ Como o espaço em que me insiro é de acolhimento textual, começo logicamente pelo caos, a forma mais natural de se começar. Sinto-me tranquila, uma vez que por ora eu mesma tenho direito a ser caótica.◊ O que desenho é feito especialmente a base de caos. queria usar o plural na próxima sentença, mas creio que preciso ser não-inclusiva neste texto. afinal, é sobre mim e não posso supor que saiba como a cabeça de outrem funciona Minha mente opera assim, pensamentos emaranhados uns sob os outros, uma sucessão infinita de conexões que nada têm a ver umas com as outras ou têm demais. Sem tempo para razão. Preciso de muito foco para alinhá-los. Penso no que aconteceu há um minuto e em coisas que só aconteceram na minha cabeça em simultâneo com o que se passou há anos e com o que nem tenho certeza se de fato se passou e apenas existiu em meus devaneios por vezes tão reais quanto a própria vida. Pego lápis, risco com pastel, vejo “A Balsa da Medusa” e penso como os nós de homens desesperados se parecem com o aperto que tive em meu peito, lambo a cola bastão uma professora disse que deveríamos sempre lamber a cola bastão antes de usá-la e os grudo na minha teia de papel. Sinto falta de cor, preciso perfurar alguma coisa, perfurar como perfuraram minhas expectativas não se pode esperar que pessoas façam o que você faria pois cada um é um, minha psicóloga um dia me disse, meto a agulha no meio do olho do autorretrato de van Gogh, uma linha vermelha o amarra junto a um pano de chão completamente esgarçado a mulher ajuda a manter minha casa limpa gosta dos panos mais furados, por mais que eu continue comprando novos. este eu roubei dela e ficou brava quando o viu costurado em sacola de papel craft junto a uma santa famosa pintada por algum artista famoso, falta mãos nesse pedaço de mundo, a caneta gel falha quando passo por cima do pastel oleoso e nunca mais volta a desentupir, agora tenho uma caneta inútil guardada em minha gaveta e não a jogo fora, não seria a arte inútil?, guardo porque ela pode ser usada junto a um Michelangelo ou a outro renascentista cujo nome não guardei pois sou péssima com nomes, pausa para o vinho. trouxe a garrafa para o meu quarto, quem estou querendo enganar? este pedaço de post-it que achei num banheiro qualquer pode se encaixar junto às anotações do antigo leitor dos meus “Gênios da pintura” ele tinha ótimas anotações, enfio outro pedaço de cotidiano combinado com obras que estão entediadas no Louvre será que um dia estarei pendurada ali também? lá nos fundos. mas quem liga? ainda é o Louvre,¤ sinto raiva então desconto mais um pouco no papel, sou do papel, não adianta tinta, não tenho paciência, tem que secar agora, não dá para esperar, não tenho tempo de usar borracha, se borrou é para ficar borrado, se errou é para ser errado, preciso imediatamente agora incontinenti já logo de imediato em seguida instantaneamente no mesmo instante rapidamente sem interrupção lista de sinônimos disponível no site sinonimos.com.br. Tem que ser agora. Eu deixo as estações mudarem minha mente.¤ Eu me permito ser alterada, remexida, repensada, revista. Gosto muito de adjetivos. Você pode falar a mesma coisa em infinitas formas distintas. Nunca há tédio perto de adjetivos. Certas palavras ou frases esparramam no plano do papel, esqueci de comentar. Quaisquer pensamentos transbordam para junto da bagunça que me permeia. E são elas que regem meus trabalhos para com a outra. O visual gera reconhecimento, sim, mas as palavras são diretas, afiadas como lata de tomate pelado minha mãe cortou a mão com uma dessas aqui em casa, teve que levar oito pontos. As palavras são diretas e não deixam espaço para interpretação; os demônios ficam explícitos, não há como se esconderem. Elas agem como lanternas quando a luz acaba. Diretas. Duras. Focais. Comecei a desenhar ainda pequena, como qualquer criança. Desenhava, mas nunca conseguia alcançar o realismo acadêmico, mesmo depois de aulas de desenho de observação. Parei de desenhar e, por isso, os demônios ficaram presos em meu peito. Se eu não sei desenhar, eu também não sinto ciúmes, inveja, raiva, desprezo, solidão – uma coisa está atrelada à outra. Por muito tempo fui boa demais para mentir para mim mesma que não sentia nada disso, até o momento em que desenhei; quando cansei de me enganar. Hoje, desenho para me definir e para definir as coisas, e desenho porque quero registrá-las, torná-las inevitáveis.≠ E as coisas vieram, tão fortes quanto os tsunamis com os quais tenho tantos pesadelos. Sinto ciúmes. Sinto inveja. Sinto raiva. Sinto desprezo. Hoje me sinto mais solitária do que ontem.+ Mas acho isso uma boa coisa porque agora posso encarar esta realidade às vezes tão insuportável – “o artista é um solitário”. Não importam filhos, amor, pois dentro dele ele vive só. Ele nasce dentro dele, parto difícil a cada minuto, só irremediavelmente só.+ É estranho jogar todas essas sombras em um texto que outras poderão ler. Mas cá estou, escrevendo para mim e apenas eu. Uma minúscula Eu.◊ Por momentos me senti má. Mesquinha. Não sinto somente sentimentos de sombra, veja. Eles correspondem a menor parte do que se passa em meu peito, embora tenha os sufocado lá dentro por tempo demais. Fingir que não existem impede um maior autoconhecimento e como posso lidar com eles de uma forma saudável e honesta. Entendo minha vida consumindo-se na luta: em parte, contra as contingências materiais; em parte, contra a incompreensão; e, em parte, contra mim mesma.∆ É assustador por vezes, pois como poderia sentir essas coisas se ninguém sente? Ou ninguém mostra que sente? Não acredito em deus, mas por vezes rezo. Principalmente quando viajo. Faço o sinal da cruz escondida, não quero que nenhuma passageira pense que sou católica porque não sou. Nem fui batizada, vou de trem expresso para o inferno se acreditasse nele. Contudo, se o que minha mãe fala é verdade, deus é energia boa. Apenas boa. Então deus há de ter boas intenções comigo, não me prejudica! Nem tudo em mim é bom!◊ percebi que estou fugindo à objetividade técnica de falar sobre meu processo. porém, sendo sincera – e aqui estou sendo bem mais do que careceria – tudo faz parte dele. os questionamentos, a escuridão, tudo. eu produzo na escuridão, com um pequeno fiapo de luz em cor bem artificial, o suficiente para não perfurar meus dedos com o bisturi enquanto corto meus “Gênios da pintura”. gosto de acordar no dia seguinte e ter uma surpresa com as cores que escolhi, já que sob a luz sintética não tenho noção do resultado. se na vida ajo sem saber as consequências dos meus atos, então por que na arte não deveria? Voltemos à escuridão. Tanto do sentir quando do fazer. Por que a necessidade do escuro? Quando criança, morria de medo. Dormi no quarto dos meus pais até os dez anos de idade por conta disso. Com vinte e seis, eventualmente tomo banho no escuro, ouço música, ando pela casa só com as luzes da rua iluminando o espaço. Ainda tenho medo, por isso a luz. O fundo não é a luz, mas a escuridão.◊ No escuro, posso ficar perto das partes que me são sombras. A vontade de produzir aumenta. A volúpia que me apossa exige escuridão. Essa escuridão é pura, absoluta, sem imagens nem visões, essa escuridão não tem fim, não tem fronteiras, essa escuridão é o infinito que cada um de nós traz em si (sim, se alguém procura o infinito, basta fechar os olhos!).≈ Uma das coisas mais bonitas que já ouvi e depois descobri que é uma das mais clichês foi numa noite muito fria em São Paulo. Daquelas noites que doem no osso, que não te permite fechar as mãos em punho. Uma amiga estava me visitando e resolvemos que seria uma esplêndida ideia subir no terraço do meu prédio para tomar um vinho. Vestimos luvas, toca, cachecol, casacos e fomos. Lá, no meio da tremedeira, ela disse: “Sabe o que acho mais incrível daqui? É que nós somos completamente insignificantes. Olha para essa quantidade de janelas. Pensa na quantidade de pessoas, vidas, segredos e histórias que vivem em cada uma dessas luzes. Nós não somos absolutamente nada, e por isso, podemos ser o que quisermos.” deixei a frase mais bonita porque é assim que escolho me lembrar dela Estamos no meio de um infinito de vidas, portanto, alguma das luzes das janelas vai sentir algo minimamente parecido com o que sinto. Isso me deu forças ou talvez um certo alívio em começar a expor essas sombras de que tanto falo. Sim, sou artista e, portanto, solitária, mas não significa que outras precisem ser. Não quero condenar ninguém ao isolamento de seus sentimentos só porque eu me isolei. Foi por aí que meus desenhos começaram a trazer um quê de verdade. No começo foi difícil. Compartilhei meus trabalhos com muita desconfiança e receio de que fosse apedrejada. E corri, com medo. Fui para os braços da garota que eu amo, o único amor que não estraguei. Dançamos lento pela sala, mas tudo o que uma estranha veria é uma garota balançando sozinha, acariciando a própria bochecha.¤ Não sonho porque não acredito.+ Aprendi a manter minhas expectativas baixas, sempre. Melhor se surpreender pelo bem do que pelo mal. Não esperava nada de mim, mas tive que tentar. Adeus, honra, a dar o primeiro passo em público.◊ E convenhamos, nem foi um público tão grande assim. Não estava à mercê de críticas, outras artistas, pessoas do circuito da arte, e ainda assim exposta para pessoas que conhecia. E talvez seja até pior. “Volte, você ainda não tem direito de fugir!”◊ Meu orgulho é grande demais para escapar à debandada. Fingir até ser, não é mesmo? Me desliguei para me preparar para as respostas como quem finge ter uma autoconfiança de artista. acabo de perceber que a música que estou ouvindo e já ouvi outras mil vezes tem o barulho do mar no fundo, me senti em casa “Você ama a natureza?”, respondo: “A minha, sim.”◊ Sei que o desfecho dessa história é um tanto óbvio. Como um filme hollywoodiano, coleciono mais respostas positivas a cada trabalho que compartilho. Pessoas que convivi por eras, outras que apenas passaram por mim, por mensagens diretas, comentários públicos, muitas e mais algumas se identificando com o que faço. Acho que isso só foi possível porque, a cada trabalho, escrevo um texto para explicá-lo. Processo é tudo, a arte final é menos. Uma certa dor me atravessa toda vez que termino alguma peça e não consigo mostrá-la em seu íntimo. O ser humano ainda não inventou um captador de pensamentos. Então, comecei a escrever. Sabia que escrevia bem porque sempre tirei boas notas no colégio. lembro que em uma prova de história usei o termo “por sua vez”. meu professor sublinhou e escreveu “muito bom” no meu “por sua vez”. usei essa expressão até enjoar Entretanto, nunca gostei de escrever. Fui ensinada uma escrita careta, acadêmica, de vestibular ou o que seja. Para escrever sobre meus trabalhos, essa escrita não cabia; e me deparei a um novo desafio. Antes de me render aos meus demônios graficamente – na época de adolescência –, quando sentia muito, escrevia. Umas escritas bem bestas, hoje vejo. Porém livres. Guardadas no fundo do meu bloco de notas. Lembrei delas. Foi na mesma época em que tentei ler “Ulysses” e falhei miseravelmente. O fluxo de consciência me levava a pensamentos muito profundos, e quando via estava perdida no labirinto da minha própria mente e não mais no livro. Aquele estado de ler e não-ler. Pensei, então, que poderia rascunhar quaisquer bobeiras adolescentes sem precisar interromper para corrigir um termo ou outro. E assim foi indo. Quando vi, difícil estava parar de escrever. Se saber quando parar de rabiscar no papel é desafiador, parar de escrever por sua vez (ironia) dei risada com essa agora, meu senso de humor é muito fácil foi mais complicado ainda. É uma questão, não é? Saber quando algo está finalizado. Acho que nunca saberei. Eu apenas paro por pura necessidade fisiológica; estar cansada, com fome ou sede, precisando dormir normalmente é isso o que determina. Se a vida tivesse um código de burlar as necessidades como o jogo de computador que tanto jogava na juventude (ainda sou jovem), estaria mexendo num trabalho para sempre, escrevendo até meus dedos caírem. Afinal, a mente nunca para, apenas quando morre. melhor dormir; melhor ainda não ter nascido.◊ pausa para tomar meu anticoncepcional: não estou pronta para ter filhos E como a mente nunca para, consequentemente o trabalho permanece em constante movimento. É esse eterno movimento que faz o trabalho ser arte. Arte não é só o produto considerado acabado pelo artista. A rota é temporariamente mudada, o artista acolhe o acaso e a obra em progresso incorpora os desvios. Depois deste acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo no instante em que foi interrompido.• Merdas acontecem. Borra-se o que não era planejado. Quebram seu coração. O trabalho absorve todas as desavenças e com elas se metamorfoseia. Os rastros. Os gestos. São gestos, muitas vezes, envoltos em um clima ritualístico.• Numa cosmologia própria de cada indivíduo produtor, cada interrupção é absorvida porque o destino assim quis. O artista envolvido no clima da produção de uma obra, passa a acreditar que o mundo está voltado para sua necessidade naquele momento; assim, o olhar do artista transforma tudo para seu interesse.• Adoro catar coisas perdidas no espaço. Todo pedaço de papel rabiscado que encontro é descuidadosamente guardado para um próximo trabalho. Acho que é importante ressaltar que não tenho apego às coisas que produzo. Tal qual meus textos e pensamentos, são feitas de instantes. Elas servem para aquele propósito temporal; não me importa se estarão vivas e preservadas para daqui anos e décadas. Até lá, terei produzido muitas outras. “Você usa durex verde, meu! Nada disso vai durar. Assume mesmo: eu trabalho com durex verde. É na fragilidade disso também (não do trabalho, da durabilidade).” Uma professora um dia me disse isso e fiquei admirada porque nunca tinha ouvido nada que fizesse tanto sentido. É sobre o durex verde, é sobre usar papel. A única coisa duradoura do meu trabalho são as artes dos “Gênios da pintura” que compro nos sebos meu sonho acabar em sebo! que tão sem-vergonhadamente uso. Uso e abuso. Nunca vou conseguir pintar nada tão perfeito – no sentido acadêmico da palavra – e nem quero! Para que, se já pintaram por mim? Eles me lembram constantemente que somos capazes de tudo se nos dedicarmos. Quero me dedicar a outras coisas, então os usufruo. Tenho certeza de que não irão se importar e se se importarem, do que adianta? estão mortos! Fiz um curso sobre o Renascimento onde a professora discorria sobre um artista a cada aula. Por mais magníficas que fossem as obras, o que mais me fascinava era pensar que pessoas faziam aquelas obras. Seres humanos. Gente como a gente. Ela contou até fofocas que rodeavam na época, e isso deixou tudo cada vez mais possível. Cada vez menos intimidador de usar no meu trabalho. Misturo os gênios com objetos banais como homenagem; para lembrá-los que eles também são gente eles têm esse direito. Pois bem, em uma das aulas a professora mostrou uma estátua de algum artista. Não sei o nome da escultura, não lembro o nome do escultor. Irrelevante. Sei que, quando ela abriu aquela tela, chorei. Chorei como uma criança. As mãos daquela escultura estavam vivas. São vivas e são o plano de fundo do meu celular até hoje. Me recuso a acreditar que aquilo é mármore. Se for, o mármore é capaz de dominar a todos nós. Se conseguiram fazer mãos vivas a partir de pedra, para que se importar em fazer qualquer coisa? A perfeição claramente já foi alcançada. O que nos resta é encontrar a nós mesmas, navegando pelas sombras e pelo constante inacabamento; um manifesto contra a perfeição. E eu artista lido com minha obra em estado de permanente inacabamento.• Pausa, desta vez para pensar. O que vem a seguir? Tenho muitas questões sobre a minha produção. Uma, a mais importante, é tempo. Assim como reles mortais, trabalho para ganhar dinheiro, pois ainda não consigo ganhá-lo apenas com a minha produção. Não cheguei a tentar, mas convenhamos que no cenário em que vivemos, é um tanto desafiador. E não sou mulher de fazer as coisas pela metade: se me comprometo, faço. Se é para trabalhar, vamos trabalhar o melhor que puder. Se é para produzir, vou até me esgotar. Se é para descansar, bem, escondam as garrafas de vinho. Vou dando meu jeito, entre as beiradas, o que não acho ruim. Me dá mais tempo para refletir e crescer como artista e como pessoa; crescimentos intrinsecamente colados. A segunda questão: espaço. Hoje, por questões financeiras, produzo no meu quarto. Um bom quarto. 4 × 4, 16 m2, um grande quarto. Minúsculo. Não comporta minhas bagunças, meus materiais, meus pensamentos, mal comporta eu mesma. Quero voltar ao primeiro ponto: tempo. quase um pleonasmo, hein? pausa para cantar junto à uma bela canção. é uma sensação bem indescritível quando sua voz encaixa com o timbre da pessoa que canta, não acham? Tempo. Tempo é relativo, como diz a física quântica. E sinto isso, verdadeiramente. Quando produzo, ele voa. Veja só: comecei a escrever este texto às 21h e já são 00h30. Três horas e meia e uma garrafa de vinho depois, mal percebi há quantos minutos estou sentada na cadeira de frente ao computador. O tempo também anda bem ligeiro quando estou no meu ritual de produção. Voa. Mas, assim como produzir, trabalhar, cozinhar, estudar, fazer exercício e aqui cito apenas as coisas que preciso fazer ou que me fazem extremo bem também engolem o tempo. Quando vejo, a semana passou e não produzi nada. O final de semana chega, momento perfeito! Embora esteja tão cansada, exausta de cabeça, acabo me cedendo aos prazeres da vida. Afinal, sou jovem, preciso da rua e ela precisa de mim. Não quero ficar velha tão cedo mal do meu pai, o eterno jovem. E a produção fica para aqueles momentos em que eu preciso dela. Mas ela sempre precisa de mim. Um relacionamento tóxico. tomo meu último gole do vinho, acredito que o fim esteja próximo Isso me fere todos os dias. Me machuco por não produzir rotineiramente. Num mundo ideal, faria apenas isso. ah, que sonho ser herdeira! A vida não facilita; é necessário fazer escolhas. Eu tento fazer o melhor que posso.* E assim vou levando minha produção, insatisfeita comigo, mas incessante. Tento não jogar muito peso em meu peito, uma tarefa difícil. A qualquer momento sou capaz de sucumbir. Respiro, e continuo. A sina da artista. Ou, pelo menos, dessa artista. Sei que, a cada trabalho que compartilho, recebo mais força. E força é bem-vinda quando o mundo parece real demais. A realidade, criada pela imaginação, é tão real quanto aquela externa à obra; daí seu poder de me afetar como artista.• Afeto e sou afetada diariamente. A cada toque, conheço mais a mim mesma e mais sobre como posso trazer reconhecimentos miseráveis às pobres almas, como a minha. Embora mais só do que ontem e hoje, eu serei amanhã.+
Nota da artista: Se “Átimo” estivesse em formato impresso, seria uma longa folha corrida, sem interrupções ou passagem de páginas; assim como minha mente. Uma sucessão de pensamentos, um colado no outro. Como sou do papel, não consigo não pensar em sua materialidade física. Talvez um dia este texto possa encontrar seu caminho para o mundo da tridimensionalidade. Só o tempo dirá.
Algumas passagens deste ensaio foram sequestradas (e por vezes adaptadas) das seguintes almas:
¤ Lorde, em “Liability”, “Louvre” e “Writer in the Dark”. Melodrama. Universal Music, 2017.
+ Lygia Clark, em Carta a Mondrian. In: COTRIM, Cecilia; FERREIRA, Glória (org.). Escritos de artistas: Anos 60/70. Zahar, 2006 (pp. 46-49).
• Cecilia Almeida Salles, em Gesto inacabado: Processo de criação artística. Intermeios, 2012 (pp. 33, 41-42, 65, 84 e 104).
◊ Paul Klee, em Diários. Martins Fontes, 1990
(pp. 104, 152, 179, 182, 205-206, 216 e 221).
≈ Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser.
Companhia das Letras, 2020 (p. 94)
∆ John Berger, em Modos de ver. Fósforo, 2022 (pp. 16, 66 e 128).
* Beyoncé, em “Church Girls”. Renaissance. Sony Music, 2022.
≠ Thomas Hirschhorn, em Déssiner = Décider. 2016. Disponível em:
<http://www.thomashirschhorn.com/dessiner-decider/>.